domingo, 24 de março de 2013

#1

Ganhei, primeiro, aquilo que chamam de ofício, que geralmente consiste em ir todos os dias a determinado lugar para exercer determinada função. Depois, ganhei uma casa. Varri, plantei, bordei panos de prato. Por fim, um amor. E o amor veio por último, acredito, para que houvesse tempo. Antes, precisei me desenhar até que eu estivesse bem parecida comigo mesma, até estar tão imersa em mim a ponto de não confundi-lo, o amor, com o tédio existencial ou a bebedeira. Foi bem fácil reconhecê-lo porque meus olhos, de tão gastos, ficaram espertos. Meus olhos são cheios de calos. Dizem que incomoda, não faz graça, a gente logo já adivinha a imagem. Eu concordo. É dolorido antever. Mas a gente aceita, como aceita qualquer coisa inevitável. A visão, se muito usada, envelhece. Aí a gente perde toda novidade, fica num marasmo de dar dó, a alma boceja. Meus olhos, de tão antigos, reconheceram um corpo - que, quando encostou no meu corpo, fez tudo ruir. Ofício, casa, cachorro, bicicleta, panos de prato. Parte de mim gritava socorro, a outra parte pedia mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário